Água no deserto
Por Ronaldo Lidório
O
deserto é possivelmente uma das mais claras representações da ausência
de vida e esperança. Beduínos e Tuaregues - povos do deserto -
desenvolveram milenares técnicas de sobrevivência para resistirem à
angustiante mistura de sol, calor e areia. Anos atrás, atravessei a
parte ocidental do Saara e, apesar de estar acostumado com as
temperaturas tropicais, nada me preparou para os 54 graus à sombra
durante aquelas tardes. Lembro-me que o pensamento mais obsessivo e
recorrente era simplesmente água, o elemento mais desejado em terras
áridas.
Davi
escreveu o Salmo 63 no deserto de Judá, enquanto fugia de Saul.
Encontrava-se em um dos momentos mais constrangedores de sua vida. Além
de estar no deserto, tomado pelo desconforto e temores natos ao
ambiente, seu povo e rei o perseguiam.
Contrariando
a natural tendência do descontentamento de coração perante as
caminhadas desérticas, Davi revela, ali mesmo na areia, que a sua alma
tinha “sede de Deus”. Este parece ter sido o pensamento mais paradoxal
que passou pela mente do salmista: a sede de Deus era maior que a sede
de água. A busca pela presença de Deus era mais forte que qualquer outra
carência humana.
Quando
em caminhadas solitárias e perseguidos pelos que antes eram mais
chegados que irmãos, devemos nos conscientizar desta verdade
transformadora: precisamos mais de Deus em nossas vidas do que água no
deserto. C.S. Lewis nos diz que “o amor é o princípio da existência, e seu único fim”.
Com isto nos incita a pensar que o amor não é apenas o meio, mas também
o propósito final. Somos convidados, em toda a caminhada cristã, a
andar de forma paradoxal em expressões de amor: perder a vida para
ganhá-la; oferecer a outra face a quem nos fere; esperar contra a
esperança; amar, e não odiar, os inimigos; perdoar, mesmo perante óbvias
razões para a amargura; desejar mais a Deus do que a água, mesmo quando
se vagueia, foragido, por entre terras mais secas.
É
nessa caminhada que encontramos descanso verdadeiro. Davi não apenas
fala da possibilidade de descanso em Deus, mas o experimenta. Os
principais verbos nos versos 6 a 8 estão no presente. Davi se lembra,
pensa e canta o descanso em Deus enquanto caminha - não apenas o planeja
fazê-lo amanhã. Reconhecer que a presença de Deus é melhor que a vida
parece ser o exercício mais transformador – de mente, coração e visão de
mundo - que qualquer pessoa possa experimentar.
Somos
amados por Deus e esse fato deveria definir a forma pela qual vemos a
vida e o mundo ao nosso redor. Ser amado por Deus é entender que somos
convidados a um relacionamento eterno, é perceber que estamos em lugar
seguro e saber que não há nada melhor.
A
construção desta canção do deserto revela a alma de Davi. No verso 1,
ele expressa que tinha sede de Deus. Nos versos 2 a 5, ele louva a Deus
pelo Seu amor que é melhor que sua própria existência. Nos versos 6 a 8,
Davi descansa no Senhor e, finalmente, nos versos 9 a 11, ele declara
sua confiança na vitória sobre os inimigos.
Encontro-me
rotineiramente com pessoas as quais, à semelhança de Davi, experimentam
a solidão do deserto, o constrangimento da fuga e a incerteza dos que
não sabem para onde vão. A vida, nesses momentos, torna-se mais lenta,
opaca e pesada. Porém, justamente em ocasiões assim, a presença de Deus
nos convida a crer um pouco mais e nos encoraja a continuar caminhando.
Em um relance olhamos para trás e percebemos que no passado o Senhor foi
fiel, mesmo no dia mais escuro. Amanhã não será diferente. A presença
de Deus sempre traz à memória o que pode nos dar esperança.
Lutero, citado por Mahaney em seu livro “Glory do Glory”, diz-nos que: “esta
vida, portanto, não é justiça, mas crescimento em justiça. Não é saúde,
mas cura. Não é ser, mas se tornar. Não é descansar, mas exercitar.
Ainda não somos o que seremos, mas estamos crescendo nesta direção. O
processo ainda não está terminado, mas vai prosseguindo. Não é o final,
mas é a estrada. Todas as coisas ainda não brilham em glória, mas todas
as coisas vão sendo purificadas”.
Que o Senhor se mostre presente em nossas vidas. Nestes dias o deserto se tornará lugar de alegria e descanso.
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