Refletindo sobre a Adoração e o Culto Cristão (III)
II. Riscos de Distorções
Em Levítico 10 temos o registro não apenas da morte de Nadabe e Abiú, mas também somos instruídos sobre o fato de que o "fogo estranho" que eles trouxeram perante o Senhor consistia naquilo que era contrário aos mandamentos divinos quanto à adoração. Paulo repreendeu os cristãos de Corinto porque eles não se ajuntavam "para melhor, e sim para pior" (1 Co 11.17), e o mesmo fez Amós com a nação de Israel (Am 4.4). Referências como essas — sobre a ira divina quanto a uma adoração distorcida — podem ser facilmente multiplicadas.
Atualmente o grande interesse sobre o tema da adoração, as divergências sobre o assunto e as feridas causadas por discussões passadas são fortes indícios de que o enfoque cristão desse assunto tem sido distorcido em grande escala. John H. Amstrong, o editor da revista Reformation and Revival, acusa grande parte da adoração moderna de ser "McAdoração," ou seja, comparando-a a um lanche popular, a algo produzido em escala industrial.22 Concordando com esta opinião, Earey afirma que o público evangélico atual espera que as igrejas "providenciem um menu de diferentes e divergentes estilos de adoração e experiência."23 Porém, a perspectiva cristã bíblica e histórica sobre adoração não vê o culto público como focalizado na esperteza ou criatividade humana, mas na santidade de Deus.24 É imprescindível corrigir o que temos feito de errado em termos de adoração; não apenas ter uma visão panorâmica sobre o assunto, mas também uma diagnose dos elementos de erro em nosso meio.
Mencionaremos apenas alguns dos erros mais comuns entre o povo cristão, no que diz respeito à adoração. Uma mente zelosa e observadora certamente será capaz de diagnosticar outros tantos em seu próprio contexto imediato. A importância desse exercício pode ser vista, em parte, na conexão existente entre adoração e teologia. Assim como nossa teologia é influenciada por nossa liturgia (adoração), nossa liturgia, em certo ponto, é um reflexo de nossa teologia. Como resultado direto, uma teologia corrompida produzirá uma adoração distorcida. E como disse Calvino, "a adoração divina marcada por tantas opiniões falsas, e pervertida por tantas superstições ímpias e tolas, insulta a majestade sagrada de Deus com atrocidades, profana seu nome e sua glória."25
Um dos erros explícitos no meio cristão, especialmente refletido em nossa adoração, vem da influência do existencialismo. Ainda que o existencialismo seja uma filosofia abrangente e complexa, podemos afirmar que sua essência consiste na ênfase na experiência, antes que na razão.26 A porta de entrada desta filosofia no meio protestante tem sido atribuída ao trabalho de Heidegger, Schleiermacher e até mesmo ao movimento carismático nos anos recentes.27 A influência existencialista na adoração cristã é evidenciada pela atual ênfase aos sentimentos.
Neste sentido, a liturgia contemporânea tem sido fortemente acusada de ser um meio para se atingir emoções.28 Assim é que grande parte dos nossos cânticos e hinos são instrumentos de auto-ajuda e auto-aceitação, e muitas das nossas orações são meios de auto-reconciliação. O resultado final é que podemos ir para casa "descarregados" e nos sentindo bem, mas sem termos adorado verdadeiramente.
Outro elemento estranho presente na adoração contemporânea é a ênfase humanística. James M. Boice corretamente afirma que nossa geração é centralizada no homem e infelizmente "a igreja, traiçoeiramente, tem se tornado egocêntrica."29 Um dos meios pelos quais essa ênfase humanística em nosso meio se manifesta é através de nossa busca frenética por entretenimento.
Vivemos em uma era tecnológica onde a distração e o entretenimento tornaram-se a ordem do dia.30 Como filhos desta nossa geração, exigimos que cada momento do culto venha satisfazer nossas necessidades. Neste contexto, o culto foi transformado em um "programa" e o desejo de se obter "felicidade" é certamente maior do que o de se obter "santidade." Queremos avidamente alegria, mas o comprometimento tornou-se secundário. Julgamos o culto como "agradável," não com base na instrução bíblica apresentada, mas no grau de "satisfação" pessoal alcançada. Assim, nossa pregação tornou-se uma homilética de consenso, na qual a boa mensagem não é a que confronta nossos pecados, mas a que nos faz sentir melhor. Além do mais, os sermões tornaram-se mais curtos porque nossa atenção e memória são curtas.31 Neste sentido, J. I. Packer observa: "Geralmente reclamamos que os ministros não sabem como pregar; mas não é igualmente verdade que nossas congregações não sabem mais como ouvir?"32 Temos que concordar com Mark Earey que o grande perigo dessa adoração é o de "usar a Deus, antes que atribuir-lhe" a devida glória.33
Um terceiro elemento de erro em nosso meio é a presença deísta em nossa praxis christiana. Popularmente falando, o deísmo é identificado como a filosofia do "criador remoto" que não interfere na criação, mas a governa através de leis pré-estabelecidas.34 Esta filosofia tem visitado o meio cristão em diferentes roupagens ao longo dos anos: gnosticismo,35 teologia do processo,36 etc. Nos últimos dias, porém, ela tem ressurgido no meio cristão sob a presunção de que, uma vez tendo "tomado posse" das promessas divinas para nós, podemos "reclamar" nossos direitos junto ao trono do Pai. A idéia é que, uma vez cumpridos os requisitos (as leis espirituais), Deus passa a estar à nossa mercê. Com isto, acreditamos na ilusão de que nossas palavras têm poder e o que "declaramos," ou "profetizamos" sobre a vida uns dos outros, e mesmo sobre a nossa vida individual, certamente acontecerá.
Por último, nossa liturgia e adoração são marcadas por uma forte dose de pragmatismo. A pressuposição central da filosofia pragmatista é que nenhuma verdade é auto-evidente. Assim, verdade e significado são dependentes de verificações empíricas, ou seja, de um teste prático.37 Se um princípio "funciona" (atende à função desejada), julgamos ser verdadeira a proposição. Uma decisão sob bases pragmáticas é uma decisão tomada não pela essência, mas pelo efeito (resultado) causado na maioria do povo cristão. John MacArthur, Jr. é um dos que levantam a voz para denunciar a influência pragmática em nossa adoração pública. Segundo ele, tudo o que queremos saber neste sentido é "se funciona…queremos fórmulas… e em algum lugar nesse processo, deixamos aquilo para o que Deus tem nos chamado."38 No que diz respeito à adoração, como em tantas outras áreas, a aplicação deste princípio pode ser desastrosa, pois o juiz supremo passa a ser um grupo de pessoas e não o Espírito Santo. Além do mais, ainda que um estilo "funcione" em um determinado grupo, a decisão com base nos resultados é nada mais que uma conformação ao presente século (Rm 12.2).
A presença destes elementos de erro em nossa adoração produz dois resultados imediatos. A adoração, que deveria ocupar o centro de nossa vida cristã, "sendo secularizada, é incapaz de nutrir, edificar, desafiar, inspirar ou formar" nossa espiritualidade.39 E como outros no passado, podemos estar atraíndo sobre nós maldições e não bênçãos ao apresentarmos "fogo estranho" diante do Senhor em adoração.
Continuação...
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